Revista Inventiva n.º 37/38 1982 Boletim CIDEF N.º 18

02-07-1982 18:03

Pioneirismo em Portugal e o desperdício damassa cinzenta criativa nacional  

Jaime O. Magalhães Filipe


O Museu do Ar e do Espaço, em Washington, é um dos mais aliciantes locais de cultura e diversão que conheço. Milhares de jovens ali acorrem todos os dias para verem coisas de que todo o mundo ouviu falar, mas que só ali existem, só ali se podem ver, tocar e até utilizar dentro de certa medida.

Desde o módulo lunar, aos grandes foguetões, às bombas voadoras V1 e V2, passando pelas primitivas máquinas voadoras, aos primeiros aviões correios, reactores em corte para melhor compreensão do seu funcionamento, aviões célebres, as cápsulas espaciais Apolo, módulo de acoplamento russo-americano, de tudo por ali há, que com a conquista do espaço e do ar tenha relação.

Para visitar este Museu são necessários dois dias bem aproveitados. Ali se pode assistir a um combate aéreo entre os Messerschmitt e os Spite-fire, com autênticos aviões da época que parecem voar sobre as nossas cabeças disparando as suas metralhadoras, em frémitos de luz e som, em tudo análogos aos momentos vividos numa verdadeira batalha aérea. A miudagem que quer experimentar um simulador de vôo e ver se poderá vir a ser um experiente piloto de caça ou das linhas comerciais, só terá que se colocar na bicha e tentar uma excitante experiência de pilotagem, num avião imaginário, mas deveras emocionante.

O Museu do Ar e do Espaço é grandioso. Tem muitas salas focando diversos aspectos. Fragmentos da lua, ao lado de tantas outras curiosidades todas elas excitantes. Quer entrar dentro de um autêntico foguetão espacial? Nada mais terá que fazer do que aguardar noutra bicha a sua vez de se sentir astronauta a caminho das camadas da estratosfera.

Um nunca mais acabar de emoções é completado com um cinema panorâmico, onde pode mesmo viajar no espaço interestelar sem se levantar da confortável cadeira do anfiteatro.

A visita do Museu do Ar e do Espaço fica na nossa memória como um acontecimento inesquecível.

Para o português curioso, este Museu tem um aspecto interessante. É o único local que conheço onde a experiência do Padre Bartolomeu de Gusmão aparece em local destacado, com a reprodução da imagem da célebre Passarola e uma referência gráfica à eventual experiência da descida em balão desde o Castelo de S. Jorge até ao Terreiro do Paço.

Cansado das pernas mas com o espírito cheio de emoções inesquecíveis, decidi almoçar no moderno e económico restaurante do Museu, para continuar da parte da tardo a visita que tanto prazer me estava causando.

Outra surpresa, porém, me estava reservada: a decoração do grande restaurante era feita à base de grandes vidros separadores, em cor sépia escuro, e em todos eles o motivo decorativo era a Passarola de Bartolomeu de Gusmão! 

Bem, para português, aquilo cai bem, sente-se um certo orgulho e leva-nos a procurar, entre os muitos dados históricos ali existentes, alguma referência à Primeira Travessia do Atlântico Sul, por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Nada, porém, encontrei desta ma-téria de tão transcendente importância na história da humanidade.

Parece existirem provas de que Bartolomeu de Gusmão desceu mesmo em balão do Castelo de S. Jorge até ao Terreiro do Paço. O Rei de Portugal terá assistido à experiência. Se Bartolomeu foi o primeiro Homem a elevar-se no espaço usando uma máquina, esse facto só por si, deveria merecer do Povo e do País onde nasceu e de toda a humanidade o mais profundo reconhecimento, manifestado através de múltiplas formas, como usar o seu nome para designar uma grande avenida de Lisboa, como por exemplo a Avenida de Roma, que passaria a chamar-se Av. Padre Bartolomeu de Gusmão – Primeiro homem a elevar-se no espaço.

Os italianos não ficariam muito zangados por esse facto, pois em Roma há uma minúscula rua chamada Via dei Portuguesi, numa zona antiga da cidade. A Praça de Londres, poderia chamar-se Praça Adriano de Paiva, primeiro homem a pensar na transmissão de imagem à distância – os ingleses também não ficariam muito zangados, pois a Portugal Street, em Londres, não tem mais de 100 metros de comprimento.

Aqui fica uma sugestão ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Se nós não cuidarmos de nós próprios, quem cuidará?

Voltando ao Padre Bartolomeu de Gusmão, porque não erguer-lhe um monumento, dedicar-lhe uma comemoração anual, o cinema nacional, com um subsídio do Fundo de Cinema, fazer um filme com a história da sua vida, as suas lulas contra os que se opunham ao progresso científico, as crianças das escolas deveriam apreciar no Museu do Ar, em Alverca, (pena não estar em Lisboa) a réplica do Balão e Passarola e sonhar com aquela aventura que marcou o primeiro passo daquilo que viria a ser a aventura do ar e do espaço, a maior aventura do Homem, desde que a humanidade existe.

Mas para os Portugueses parece que este Homem de Génio nunca existiu, tal é a indiferença que todos nós votamos a tão importante acontecimento.

Voltando ao Museu do Ar e do Espaço, em Washington, lá encontraremos, na nave principal do Museu, algo que é orgulho nacional americano: o primeiro avião que cruzou o Atlântico Norte - o Spirit of S. Louis, tripulado por Lindberg. Este feito, que teve lugar em 1927, galvanizou o mundo, pela transcendência que o caracterizou. Lindberg, no seu avião de asa alta, metálico, cabina fechada, foi o primeiro homem a ligar a América à Europa, por ar.

Em 1922, cinco anos antes, dois portugueses, numa caranguejola de pau, tela e corda, ligaram a Europa à América do Sul, usando novos métodos de navegação da sua própria criatividade, numa época em que a tecnologia estava menos desenvolvida, pois em cinco anos houve naturais progressos na evolução das máquinas voadoras.

Vem tudo isto a propósito da atitude de indiferença do público e das autoridades do nosso país para com aqueles que dizem ao mundo que Portugal não é uma terriola de campónios ignorantes e que aqui neste pequeno e pobre rectângulo surgem homens dignos do respeito e veneração de toda a humanidade. Só que os próprios portugueses se esquecem, ou lhes votam a maior indiferença.

Há tempos, a RTP apresentou num programa "Presença do Brasil" um filme intitulado "Artistas Brasileiros em Hollywood". Verifiquei, com espanto, que a maior parte dos nomes referidos nesse filme eram artistas portugueses, nascidos em Portugal, como Aurora e Carmen Miranda.

Quase espantoso! Os portugueses, quando gloriosos, mudam de nacionalidade e são apresentados como naturais de outros países como aconteceu com tantos outros, tais como Filipe de Sousa, Joe Costello, Clair Trevor (Clara Tavares) e tantos outros!...

Carmen Miranda foi a mais famosa artista portuguesa de todos os tempos, foi uma vedeta mundial de primeiríssimo plano entre as estrelas mais famosas de Hollywood. Nasceu em Marcos de Canavezes, no Minho, emigrou para o Brasil já crescida, por volta dos dezasseis anos e é glória daquele país. E na terra onde nasceu? Ela é portuguesa, ou brasileira? Há alguma rua, praça ou instituição com o seu nome?

Nós somos assim, não ligamos a nós próprios. É um mal nacional que temos que combater! Os inventores portugueses queixam-se amargamente da indiferença com que as suas ideias são recebidas no seu próprio país. Não fossem os salões internacionais de inventores em que Portugal arrecada todos os anos um bom lote de medalhas, muitas vezes de ouro, e o povo português nem saberia que em Portugal há inventores, tão habituado está a consumir tudo o que vem de fora e a descrer de ludo o que é capaz de produzir e realizar.

Projecto português do aparelho Visuo-Tactil – o Electrovisor

 

Eu próprio tenho vivido a minha história de indiferença e faltas de apoio, para uma ideia que me ocorreu em 1957 e que podia ter dado a Portugal o privilégio de ter sido mais uma vez o primeiro numa área tão sensível como a de levar a imagem a pessoas cegas.

Por alturas de 1965 dois investigadores norte americanos iniciaram estudos no Instituto Smith Ketlewell de Ciências Visuais em S. Francisco da Califórnia. Eram eles os Drs. Back-Y-Rita e Carter Collins. Após alguns anos de experiências e realizações, estes dois homens são internacionalmente reconhecidos, pois não houve revista ou jornal em todo o Mundo, que não se referisse às suas descobertas. O cinema americano dedicou uma produção aos seus trabalhos, com um filme que passou na RTP, na série "Médicos de Hoje".

Que fizeram afinal esses investigadores famosos? Inventaram um aparelho, ou antes reinventaram um aparelho, inventado por um português e registado em 1959 no Departamento de Patentes, com o nome de Electrovisor.

Que aconteceu entretanto em Portugal, entre 1957 e 1965?

Ao ter a ideia da concepção de um aparelho, que usando técnicas de televisão, permitiria às pessoas cegas uma espécie de visão táctil das imagens circundantes, dirigi-me à Fundação Gulbenkian, com o propósito de pedir subsídios que me permitissem pôr o projecto em prática. Não pedi auxílios oficiais, pois não sabia onde e a quem fazê-lo, num país onde nada estava organizado para apoio à inventiva. Pareceu-me assim que a Fundação Gulbenkian seria o sítio indicado para expor com entusiasmo uma ideia que me apaixonava, na esperança de encontrar eco e apoio naquela Fundação. Várias foram as diligências e várias as cartas trocadas. Reproduzo aqui um parágrafo duma que escrevi em 1959 – "O aparelho proposto, embora apenas idealizado, julgo será uma realidade absolutamente viável num futuro próximo, pelo que não quero desvanecer esta iniciativa que a tantos poderá beneficiar".

Aparelho austríaco: utilizador sente no abdómen a imagem do ecrã de computador  Pessoa a ler com o Optacon

Aparelho austríaco baseado no princípio Visuo-Tactil - a operadora cega do Terminal de Computador, sente no abdómen as imagens provenientes do Terminal. Optacon, aparelhobaseado no princípio Visuo-Tactil, análogo ao Electrovisor.

 

Nos contactos que tive com responsáveis da Fundação, fui sempre recebido com muita cordialidade e compreensão, mas nunca se chegou a qualquer resultado prático. Foi-me mesmo afirmado verbalmente que aquela Fundação não financiava inventores. Isto foi há 23 anos! Sem saber a que porta mais poderia bater, procurei a Fundação Martim Shine, onde a minha ideia foi bem recebida, tendo o Casal Shine prometido procurar saber junto da Associação de Cegos de Nova Iorque, se já algo existia na matéria. Passaram muitos meses sem qualquer resposta. Um dia escrevi uma carta àquela Fundação pedindo a devolução dos documentos, o que foi feito acompanhado de uma carta protocolar.

Finalmente procurei uma Associação de Cegos. Reuni-me com a Direcção. Fui acompanhado nesta diligência pelo Engenheiro Pimenta Rodrigues, meu colega de trabalho na RTP, a única pessoa que consegui entusiasmar com o projecto e que me ajudou em alguns aspectos técnicos. Eram pessoas já idosas e pouco motivadas. Ouviram a minha exposição e no final declararam: "Isto não deve ser possível, porque se fosse, já os americanos o tinham feito!..." Saí da Associação completamente desanimado e meti o projecto na gaveta! Deve dizer que isto foi há 23 anos, hoje as Associações de Cegos têm direcções dinâmicas e dispostas a acompanhar o progresso.

Em 1971 voltei à carga e registei uma nova patente. O Electrovisor II, este já utilizando as novas técnicas dos fototransistores, que entretanto tinham surgido no mercado mundial.

Um dia, ao ler a Revista Vida Mundial, vi a esperada notícia. Investigadores americanos descobriram um sistema de visão táctil para pessoas cegas. Vibrei de entusiasmo ou talvez de nostálgico entusiasmo. Afinal aquilo era possível e como pensara, mas tarde ou mais cedo surgiria em qualquer país.

Escrevi para S. Francisco e obtive resposta, uma resposta multo lisonjeira, cujo texto aqui reproduzo:

We thank you most cordially for the copy of your inspired patent on a means for projecting electrical images into the skin of a blind person. Congratulations on a very worthwhile idea. As I mentioned in my last letter, we have quoted your work in our latest publication of which we enclose a preprint. Note reference to your invention on Page 14.

Com um pequeno subsídio da Fundação Gulbenkian e com as restantes despesas por minha conta, fui a S. Francisco ver o que se passava.

Foi um deslumbramento ver aparelhos exactamente iguais aos por mim idealizados, baseados nos mesmíssimos princípios, funcionando e prometendo algo de maravilhoso para aqueles que estão privados de vista.

O Dr Carter Collins submeteu-me a uma experiência: vendou-me os olhos, aplicou-me uma câmara de televisão corno se fossem óculos vulgares e colocou letras brancas num quadro preto.

Procurei ler, sentindo as imagens no ventre onde fora colocada uma placa de 260 eléctrodos estimuladores. Identifiquei as letras com alguma facilidade, apesar de ter os olhos vendados. O Dr. Collins, perguntou-me: "Qual foi a sua sensação ao verificar que a sua ideia tinha viabilidade?" Fiquei muito grato ao Dr. Collins por esta gentileza. Ele reconhecia naquele momento que a ideia original não era dele. Ele a havia tido também e a tinha realizado mas 7 anos mais tarde.

Enquanto prosseguiam os estudos e experiências no Smith Kettlewell lnstitute, bem próximo de S. Francisco, o professor catedrático de Electrónica da famosa Universidade de Stanford, professor Livilln, procurava com a sua equipa de investigadores construir um aparelho, baseado nos mesmos princípios visuo-tácteis, tendo então nascido dessa investigação o primeiro protótipo do Optacon.

Pessoa a ler texto impresso com o OPTACON

Outro pormenor do Optacon: a câmara de televisão percorre
as linhas do texto e a imagem das letras é sentida pela pessoa
cega no dedo indicador da mão esquerda.

 

Do contacto com os investigadores americanos, surgiu a ideia de se criar um centro de estudosem Lisboa, em regime de cooperação. Com esse objectivo vieram por 3 vezes a Portugal os Drs. Collins e Back-y-Rita. Foram recebidos pelo então Ministro da Educação e foi atribuída uma verba de 1000 contos para um centro a criar no Instituto Gama Pinto. Surgiram investigadores portugueses interessados, como o Professor Doutor Ferraz de Oliveira, distinto oftalmologista. Criou-se o Centro de Estudos de Substituição Visuo-Táctil – CESVT, mas infelizmente tudo veio a desvanecer-se por diversas razões que seria fastidioso aqui referir.

De toda esta tragédia nacional, perdoai a imodéstia, ou pelo menos pessoal, algo ficou. Em 1974 foi fundado o CIDEF - Centro de Inovação para Deficientes, no âmbito da Associação Portuguesa de Criatividade, graças à compreensão dos dirigentes desta associação, Engenheiro Duarte Fonseca e Coronel Alves dos Santos.

Passaram os anos...

Em 1982 o CIDEF é urna realidade, devido aos subsídios que a Junta de Investigação Científica e Tecnológica lhe tem concedido.

Integrado na Associação Portuguesa de Criatividade, o CIDEF tem urna actividade única no país, no âmbito da Engenharia de Reabilitação, quer importando e divulgando tecnologias de ponta, de origem estrangeira, quer apoiando projectos nacionais. Um Centro de Documentação gratuito, a quem solicitar informações sobre a mais variada aparelhagem existente no mundo, e cursos igualmente gratuitos para deficientes e monitores, completam as actividades do CIDEF, as quais serão objecto de próximo artigo a publicar nesta revista.

Urna última chamada de atenção... O que toma os países ricos, o que proporciona o bem estar social, não são só os recursos naturais, mas a criatividade devidamente aproveitada. Todos nós sabemos isto, só que esquecemos com frequência.

A Suíça não tem ouro nem petróleo, ouro ou carvão, nem sequer grandes pastagens para criar gado. O padrão de vida dos seus naturais é dos mais elevados do mundo, graças à sua criatividade e espírito de iniciativa. Mas não há só a Suíça, como exemplo. Outros pequenos países como a Áustria (16 prémios Nobel) a Holanda, etc.

Os portugueses, se quiserem continuar a exportar os seus produtos tradicionais terão que ser inovadores e competitivos. Sapatos de modelo italiano, feitos em Portugal, ou vestidos inspirados na moda francesa, têm à partida pouco crédito dos compradores Os industriais começam a compreender isto. Os estilistas portugueses começam a surgir, pois só com criatividade nacional poderemos sobreviver num mundo cada vez mais competitivo.

Os portugueses foram grandes, quando fundaram a Escola de Sagres, quando estudaram novos métodos de navegação, quando fizeram barcos inovadores e melhoraram o armamento em relação aos seus adversários.

A APC – Associação Portuguesa de Criatividade, procura congregar a inovação nacional, não só os inventores, mas todos aqueles que com a sua inteligência e espírito de iniciativa vão modificando e criando novos produtos ou actualizando os existentes. Somos 200 sócios, deveríamos ser 20 000 lutando em conjunto para que Portugal pudesse entrar no mercado com algo de inovador para vender.

A nossa Balança de Pagamentos, sempre deficitária com a maior parle dos países com quem trocamos mercadoria, pode modificar-se se formos capazes de produzir inovação, qualidade e competividade de preço.

No pequeno e pobre Portugal há gente capaz de modificar o negro panorama actual. É necessário saber aproveitá-la. A massa cinzenta nacional não é diferente das dos restantes países, mesmo dos mais avançados.

Se temos sido pioneiros em muitas áreas do progresso humano, saibamos aproveitar essas potencialidades e estimulemos os criativos, os inovadores, aqueles que realmente fazem andar os países na carruagem da frente. Podemos orgulharmo-nos das capacidades reveladas pelos Trabalhadores portugueses, quando bem integrados e bem dirigidos. A boa imagem do trabalhador português em Países tecnologicamente avançados é urna realidade ouvida vezes sem conta.

Esta pequena Associação que há 10 anos vem entrando pelo progresso do país, deve ser mais agregada pelas entidades oficiais, e merecer o carinho do público em geral. Ela pode contribuir um pouco para que Portugal deixe a cauda do comboio e se lance para a frente, para bem de todos nós.
 

Refefência: Jaime Filipe - Pioneirismo em Portugal e o desperdício da massa cinzenta criativa nacional. Inventiva n.º 37/38. Associação Portuguesa de Criatividade. 1982
Revisão da conversão do texto por OCR de Rita Oliveira