Revista Inventiva n.º 36 OUT/DEZ 1981 - Boletim do CIDEF nº 17
A propósito do CIDEF e da problemática nacional
e a deficiência física
MEMORANDUM DE JAIME FILIPE
Ao ser-me solicitado pelo Ex.mº Sr. Dr. Rui Ferreira Leite, Dg.m Secretário Geral da Associação Industrial Portuguesa, a elaboração de uma análise da problemática da deficiência física e mental no nosso Pais, particularmente no que se refere aos aspectos do trabalho e das ajudas técnicas, faço-o com o maior prazer.
ACESSO AO POSTO DE TRABALHO
As possibilidades de emprego são diminutas, devido a factores de vária ordem, a falta de legislação adequada; inexistência de uma consciencialização colectiva dos aspectos sociais e económicos; falta de preparação cultural e profissional para uma acção conconcorrencial no mercado de trabalho: crise generalizada no sector laboral, tornam quase impossível à pessoa deficiente o desempenho de qualquer actividade profissional.
NÚMERO DE DEFICIENTES
Fala-se com frequência na existência em Portugal de um milhão de deficientes. Sem quaisquer dados estatísticos (que ninguém possui) este quantitativo carece de alguma reflexão.
Sem se sair do campo das hipóteses, porquanto o referido quantitativo é hipotético, mas servindo-nos de estatísticas estrangeiras, teremos cerca de 3% da população deficiente em Portugal. É mais sobre este valor que vamos reflectir, dado que do milhão estimado, muitos deficientes têm muitas possibilidades de acesso ao mercado de trabalho, estando mesmo muitos a desenvolver em pleno, funções em diversas empresas e organismos públicos.
Deficiente, pode ser um individuo sem um dedo, mas também pode ser um tetraplégico.
Olhemos para os deficientes profundos. Suponhamos que são cerca de 3% da população. Teremos assim 300 000 pessoas em Portugal, que não andam, não falam, não veêm, ou são deficientes mentais. Três em cada cem portugueses com graves deficiências, é um número impressionante, sobre o qual há que reflectir de forma responsável.
CONCEITOS DE ORDEM SOCIAL E DE ORDEM ECONÓMICA
Em Portugal tem-se feito bastante em prol das pessoas deficientes. Há um grande número de instituições, melhor ou pior instaladas, que se dedicam a minorar tão vasto problema.
Na sua maioria são organizações filantrópicas, em que intervêm pessoas de grande dedicação, as quais vêm dando o melhor do seu esforço, visando particularmente as crianças. Digamos que as crianças deficientes encontram quase sempre quem selas se ocupe, de forma mais ou menos organizada. O mesmo não se verifica com os adolescentes e particularmente com os adultos. Muitas vezes saem dessas instituições indivíduos profissionalmente habilitados, mas sem qualquer hipóteses de encontrar trabalho onde quer que seja.´
As sociedades mais avançadas tecnologicamente, e onde se procura contabilizar os custos em aspectos onde comummente não se fazem contas, começaram a pensar nos pesados encargos que os deficientes profundos representam para as sociedades modernas.
Em outros países, um deficiente bi-amputado dos membros inferiores, não é mais do que um candidato a pedinte nas ruas centrais da cidade.
Os deficientes profundos mobilizam pesados investimentos desde a sua reabilitação à integração no mundo do trabalho, mas há que os tornar produtivos na medida do seu grau incapacidade, ou antes, pelo inverso, do seu grau de aproveitamento para determinadas tarefas.
Um deficiente não produtivo necessita normalmente da assistência de mais uma a três pessoas, para cuidarem, pelo que sem grande risco de exagero podemos pensar em Portugal pelo menos seiscentas mil pessoas estão impossibilitadas de darem o seu contributo à economia do País, sendo antes pelo contrário, naturais consumidores – apenas consumidores.
INDEPENDENT LIVING
É um grito que se ouve nas sociedades mais evoluídas quando se pensa libertar as pessoas deficientes, através da moderna tecnologia. É uma nova mentalidade que está a surgir.
É necessário dar ao deficiente a possibilidade de, por si só, resolver quase todos os seus problemas. Para tal há que investir na investigação, na busca de novas formas de tirar o deficiente do imobilismo, criar novos conceitos arquitectónicos e inventar um sem número de meios capazes de libertar a pessoa portadora de elevado grau de deficiência. Assim nasce a
ENGENHARIA DE REABILITAÇÃO
Nos últimos dez anos nasce um novo conceito de Engenharia. Em dezenas de Universidade norte americanas, surgem licenciaturas em Engenharia de Reabilitação. Por todos os lados começam a surgir projectos e protótipos que se vão tornado realidade. Numerosas empresas fabricam novos produtos, outras foram mesmo constituídas expressamente para fabrico em série de aparelhagem por vezes complexa, como é o caso da electrónica.
Não só nos Estados Unidos, mas também em outros países, assiste-se a um espectacular progresso no campo das ajudas técnicas a pessoas deficientes, como por exemplo na Alemanha Federal, na França, na Suíça, na Dinamarca ou na Suécia.
AS EXPOSIÇÕES DE EQUIPAMENTOS
Realizam-se com frequência Salões Internacionais de Engenharia de Reabilitação. Infelizmente sou quase sempre o único português presente nestes certames facto que não refiro com orgulho, mas antes lamentando.
Em Toronto, em 1979, estiveram presentes mais de 100 expositores durante a «Internacional Conference of Rehabilitation Engeneering». Pude ali avaliar quão longe já se chegou na matéria tão e quanto se ignora em Portugal daquilo que se faz lá fora, e da mentalidade generalizada que há sobre estes assuntos nos países mais avançados.
…NOVOS HORIZONTES?
Há 3 anos propus à RTP a realização de um programa de televisão, agora semanal, com o objetivo se se divulgar o que está acontecendo no mundo das ajudas técnicas e de motivar a opinião pública, fazendo ao mesmo tempo, uma chamada de atenção às entidades responsáveis.
Tenho muitos motivos para considerar este programa com saldo muito francamente positivo. Seria fastidioso criar aqui casos concretos. Mas «Novos Horizontes» é o único programa – regular – semanal sobre a temática dos deficientes existentes em qualquer país, embora em outros, esta temática apareça com muita frequência nos écrans da televisão, em situações pontuais ou em pequenas séries filmadas.
O CIDEF
O CIDEF é o Centro de Inovação para Deficientes modesta «maqueta» do que deveria ser a investigação e a divulgação das modernas tecnologias. Criado no âmbito da Associação Portuguesa de Criatividade, o CIDEF tem mantido escolas para pessoas cegas e deficientes visuais, usando aparelhagem electrónica sofisticada, estando para breve o início de cursos para crianças deficientes mentais com nova aparelhagem, ainda aguardado os incompreensivelmente morosos despachos alfandegários.
Subsídios por parte da Junta de Investigação Científica e Tecnológica, tem permitido ao CIDEF manter este elo que liga Portugal às tecnologias estrangeiras, bem como estimular a criatividade nacional e dar a conhecer a público e às instituições especializadas um pouco do que vai acontecendo no mundo da técnica para deficientes.
Um Centro de Informações Técnicas gratuitas, completas as actividades do CIDEF.
O QUE FALTA FAZER EM PORTUGAL
Em Abril do corrente ano realizou-se em Viena de Áustria a 3.ª Conferência Internacional de Reabilitação. Como habitualmente, existia uma vasta área destina à exposição de diversos produtos com origem em muitos países, alguns dos quais bem mais pequenos do que em Portugal e com menor índice populacional. Destaque para a Finlândia, por exemplo, com uma avançada indústria electrónica no âmbito da integração das pessoas deficientes, ou para a Jugoslávia, com originais produtos resultantes da investigação conjunta com Universidades Norte Americanas.
E Portugal? O que se faz em Portugal?
Em electrónica não tenho conhecimento de qualquer aparelho realizado ou comercializado. Apenas professores e alunos da Faculdade de Engenharia do Porto procuram levar por diante alguns projetos, mas que eu saiba, sem êxito até ao presente, por falta do necessário apoio. Duas pequenas fábricas de cadeiras de rodas, cópias de cadeiras inglesas, mas pesadas e menos resistentes que as originais, algumas organizações que se dedicam à construção e reparação de próteses de membros superiores e inferiores, como o caso de Alcoitão, Associação dos Deficientes das Forças Armadas ou da Liga Portuguesa dos Deficientes Motores. A este panorama desolador podemos acrescentar os fabricantes de triciclos motorizados, por vezes um tanto bizarros, mas com alguma originalidade, porquanto nos outros países não é normal recorrer-se a motores de combustão, mas sim a motores electricos, na locomoção de pessoas deficientes.
Por onde começar então, para mudar este panorama, quase deserto a pouca distância de uma Europa fluorescente, onde até a própria Espanha anunciou, na referida Conferência de Viena de Áustria, a criação em Madrid de um Centro de Investigação Cientifica, no âmbito da Engenharia de Reabilitação?
1 – FORMAÇÃO E MOTIVAÇÃO A NÍVEL DO ENSINO SUPERIOR
Alguns aspectos relevantes a ter em conta:
-Apoio à inventiva nacional, estimulando a criação, nas Escolas Superiores de Lisboa, Porto e Coimbra, de cadeiras de Engenharia de Reabilitação, com a elaboração de estudos científicos tendentes à criação de protótipos originais, a desenvolver pela Inventiva Nacional;
-Criação de Grupos de Trabalho, para acompanhamento de projectos e realizações estrangeiras;
-Criação, nas escolas Superiores de Arquitectura, de estudos de nova arquitectura humanizante, que não exclua as centenas de milhar de pessoas deficientes e idosas da vida comunitária. Há que rementalizar os profissionais de arquitetura. As impunentes escadarias, por exemplo, que pertencem à antiga Grécia, chegaram até aos nossos dias;
-Desenvolver nas Escolas Superiores de Medicina, estudos de biengenharia, tendo em vista novos conceitos tecnológicos a que o médico não pode ser indiferente. O engenheiro médico têm que trabalhar de mãos dadas na concretização de projectos nos quais está em jogo o corpo humano;
-Estimulando os inventores através de prémios ou facilidades aliciantes, para desenvolverem a sua criatividade no sector de importância fulcral, não esquecendo o trabalho importante que a APC vem desenvolvendo, através do CIDEF, procurando estimular a sua forte motivação para a investigação cientifica e desenvolver o sue projectado «Engeneering Rehabilitation Center»
2 - NO CAMPO DA INDUSTRIA
Há números aparelhos e equipamentos que podem ser fabricados no País, com tecnologia de que se dispõe. Não creio que seja muito compensadora esta actividade em termos meramente comerciais, mas se pensarmos nas alternativas que se nos apresentam, teremos: ou compramos a tecnologia estrangeira, ou então produzimos os nossos próprios equipamentos para o mercado nacional e tentamos coloca-los noutros mercados, como o fazem outros pequenos países de maior compatibilidade. A Suiça, por exemplo, coloca cadeiras de rodas nos Estados Unidos da América. A Suécia e a Dinamarca, exportam para todo o mundo aparelhos electrónicos ou mobiliários adaptados à dona de casa deficiente. A Inglaterra possui uma poderosa organização, da qual destaco, por exemplo, a Possum Comunicator, subsidiada pelo Governo e produtora de uma vasta gama de aparelhagem electrónica e mecânica.
3 – CRIAÇÃO DE UMA COMISSÃO DE ESTUDO DA VIABILIZAÇÃO DA ENGENHARIA DE REABILITAÇÃO, EM PORTUGAL
Entre as tarefas deste Grupo de Trabalho, figuraria a elaboração de um certame internacional de Engenharia de Reabilitação, a realizar na Feira das Indústrias, como acção motivadora e despoletadora de iniciativas a concretizar no espaço nacional.
- Eventual criação de cooperativas de produção, com larga participação de operários e técnicos deficientes;
- Estudo, fabrico e adaptação de aparelhagem electrónica usando «voz sintética», expressando-se em português, tendo em vista os mercados da língua portuguesa, incluindo o Brasil;
- Intercâmbio de conhecimentos em projetos comuns, com a participação de investigadores estrangeiros, trabalhando em períodos determinados, em colaboração com investigadores e industriais portugueses.
CONCLUSÃO
Se formos capazes de fazer um bocadinho do muito que há para fazer, significa que começaremos a despertar para uma nova mentalidade que nos deve orientar para uma verdadeira integração na Europa do Mercado Comum.
Aqueles que nasceram com deficiências, ou as adquiriram no longo da sua existência, têm o direito de ocupar na sociedade o seu lugar de cidadãos de pleno direito, com acesso à cultura e ao trabalho. Um deficiente, ou é um peso morto para a economia, ou reabilitado e integrado passará a ser um elemento útil, contribuindo para o bem estar geral,
Se formos capazes podemos começar a modificar o atraso em que nos encontramos, em algo de promissor, tendo em vista uma sociedade mais responsável e consistente. Há, porem, que levantar o véu e começar por uma ponta. Esse primeiro passo que se aguarda há muito com impaciência, tem que ser dado.
Portugal deve alinhar com as nações modernas e intelectualmente evoluídas, e não com as mais atrasadas, do 3.º Mundo.
Estamos na Europa, vamos também na área da Engenharia de Reabilitação - SER EUROPEUS.
Alguns exemplo de casos concretos. Nos quais a Engenharia de Reabilitação permitiu já o acesso ao trabalho de pessoas até então inoperativas, em virtude das suas deficiências.
CEGOS
- Operadores de Informática
- Reservas de Bilhetes, cm Companhias de Aviação
- Contabilistas
- Telefonistas de grandes empresas – com registo de mensagens memorizadas
- Dactilógrafos de grandes empresas – com alto rendimento de trabalho
AMPUTADOS OU PARCIALMENTE PARALIZADOS
-Trabalhos com máquinas e ferramentas adaptadas (depende do grau) – acesso ao trabalho, através de uma formação usando diversa aparelhagem moderna para desenvolvimento da mente – T – Trabalhos simples de embalagem, separação e classificação. Penso ter-lhe dado, Sr. Dr., uma breve panorâmica dum problema. Se sairmos da apatia e passarmos à acção, dentro dos meus modestos préstimos, ponho-me desde já ao seu dispor
Com os melhores cumprimentos.
Lisboa, 26 de Novembro de 1981
JAIME OCTÁVIO M . FILIPE
Refefência: Jaime Filipe - A propósito do CIDEF e da problemática nacional e a deficiência física. Inventiva n.º 36. Associação Portuguesa de Criatividade. OUT/DEZ 1981
Ficheiro pdf (700 kB): Boletim do CIDEF n.º 17 da revista Inventiva n.º 36/DEZ 1981
Revisão da conversão do texto por OCR de Lígia Magalhães