Horácio e as Bolas de Vento
Artigo de Jaime Filipe no Comércio do Porto
em 10 de outubro de 1981
Secção COMO VER TELEVISÃO
(Mais informação sobre as Bolas de Vento)
Desde há muito que estou ligado à Engenharia de Reabilitação. Há uns anos realizou-se em Toronto, um importante congresso sobre esta matéria, no qual tive a satisfação de participar. O que hoje se passa em termos de avanço tecnológico no mundo das ajudas técnicas para deficientes, é verdadeiramente apaixonante, mas não é da engenharia de reabilitação que vou falar-vos, mas sim de um acessório indispensável aos microfones denominado internacionalmente de WINDSCREEN, e que em português chamamos «Bolas de Vento».
Antes porém queria apresentar-vos o meu amigo Horácio — o Horácio Borja, há muito radicado na cidade canadiana de Toronto. Andemos para trás 3 dezenas de anos. O Horácio era então mecânico na Emissora Nacional. Muito jovem, vestia o seu fato de macaco de ganga azul e um cachecol de lã enrolado ao pescoço. É assim que o estou a recordar. Sempre bem disposto, rindo e gracejando, Horácio tinha a simpatia dos colegas de trabalho. Um dia, como acon-tece a quase toda a gente, casou, e mais tarde foi pai de um rapaz. Queria comprar-lhe brinquedos, mas o diminuto vencimento não lhe permitia gastos supérfluos. Assim, resolveu ele próprio fazê-los. Mas que brinquedos! Bem, barcos à vela, tão perfeitos como os melhores de compra. Aviões com motor a diesel ou a gasolina, tudo ele fez desde a fuselagem ao próprio motor! O que saía das suas mãos era tão perfeito que se confundia com produtos similares saídos das grandes usinas do estrangeiro. Horácio era um espanto! Tinha urna inteligência, viva, extremamente criativa, urnas mãos que diria de Mago! Pobre, ganhando pouco, foi animado por amigos a comprar um torno e começar assim em casa a construir carretos de pesca e motores de avião, os quais vendia nas casas da baixa lisboeta em concorrência aos congéneres estrangeiros!
Certo dia o Horácio emigrou para o Canadá! Nunca mais o vi. Passaram mais de vinte anos! Mas a sua lembrança voltava muitas vezes à minha memória! Quanto gostava de o ver, de o abraçar, de saber o que tinha feito ao longo deste dilatado período, como teria desenvolvido as suas invulgares capacidades.
Aproveitei a minha deslocação ao Canadá, para rever e abraçar o velho amigo.
Quando cheguei ao Hotel em Toronto uma das minha preocupações primeiras foi procurar o seu nome na lista telefónica.
Não faz ideia o leitor quantos nomes portugueses lá encontrei! Basta dizer que naquela região andam pelos 200 mil! Borjas havia vários mas nenhum era Horácio!
Quase resignado a desistir lembrei-me de perguntar à «operadora» se havia nos arredores algum assinante com aquele nome. A resposta foi: «Há sim o número é tal... vou ligar...». Uma voz masculina aparece do outro lado da linha, «Alô — Horácio?» «Sim!» «Daqui fala Jaime» «Qual Jaime?» «O Jaime Filipe, sou o teu colega da Emissora!!». Foi o fim!! O Horácio veio a correr de 30 km de distância buscar-me ao Hotel. Meia hora depois estávamos aos abraços e às palmadas nas costas entre risos e ditos de humor! Hoje o Horácio Borja tem a sua própria indústria e é um técnico consagrado em projectores de cinema. Quando há problemas complicados em Toronto, chama-se o Horácio, para resolver, ele resolve e faz-se pagar bem. Junto à cidade há um parque de diversões o «Ontário Place» do qual faz parte um cinema esférico.
Algo de espantoso. Se assistiu ao programa «Loja da Música» de 26 de Setembro pode ver o tal cinema de que lhe falo e que a foto aqui representa. Um espectáculo cinematográfico com várias máquinas síncronas, projectando num ecran gigante que deixa o espectador atónito e deslumbrado! Grandes técnicos aqueles que conceberam tal maravilhal... Sabem quem esteve na primeira linha daquele projecto monumental? Exactamente, o Horácio. Aquele rapaz de fato de macaco que ganhava por cá uns cobres para sobreviver como modesto mecânico das viaturas da Emissora.
Voltemos agora a Portugal, aos campos desportivos. Domingo de nuvens, reportagem de futebol à chuva e ao vento. Os locutores, habituais, o Artur Agostinho, o Lança Moreira, o Igrejas Caeiro e tantos outros, de microfone na mão, auscultadores nos ouvidos, relatando o desenrolar dos acontecimentos. O vento fazia um ruído por vezes, de tal modo violento que parecia um comboio a 100 km. à hora! Era um ruído insurportável que tapava completamente a voz do locutor! Para o evitar ou reduzir, viravam-se de costas e... muito importante... enrolavam um lenço em volta do microfone! O ruído era assim substancialmente atenuado com esta invenção dos locutores da Rádio Portuguesa!
Passei muitos tempos da minha vida sentado num banquinho fazendo o controle de som dos relatos da bola. Assisti àquilo vezes sem conto. Comecei a pensar, o porquê do ruído se atenuar só com o enrolar do lenço, continuando a ouvir-se a voz perfeitamente bem. Hoje sei e o leitor vai saber qual a razão, mas naquele tempo dava-me que pensar!
Passemos a uma breve explicação técnica. O Som como muitos outros fenómenos vibratórios decresce na razão inversa do quadrado da distância! Bem, nada de complicações com leis da Física. Vamos à prática! Assim, se eu falar a um palmo de distância do microfone, tenho uma dada intensidade na sua célula.
Mas se eu falar a dois palmos de distância, a intensidade é quatro vezes menor e não duas! e se eu duplicar esta nova distância e intensidade será dezasseis vezes menor!
Este facto tem a mais relevante importância na captação de som, e todos nós já reparámos por vezes um ligeiro afastamento ou aproximação faz aparecer ou desaparecer completamente o som do locutor ou cantor.
A célula do microfone está no interior de uma caixa metálica com rede ou perfurações, fazendo-se chegar até ela a pressão acústica do som da voz ou outro qualquer. O vento ao passar, faz atrito na estrutura do microfone. Esta entra em vibração e o ruído produz-se. Se afastarmos esse atrito da célula o ruído decresce substancialmente por força da lei atrás referida.
Foi este pensamento que me ocorreu num daqueles domingos de futebol, há muitos e muitos anos atrás.
Voltemos ao Horácio. Estou em sua casa nos arredores de Toronto, ouvindo as maravilhas das suas aventuras. Piloto acrobata de avião, notável piloto de planadores, com larga experiência e cheio de aventuras; navegador oceânico no seu próprio iate com viagens de longo curso entre as Américas do Norte e do Sul. O Horácio é de facto um homem invulgar! No meio da conversa animada e cheia de recordações perguntei ao meu velho amigo: «lembras-te daquela bola de vento que construímos com arames de cobre soldados e bocados de pano cru? Repara Horácio que nessa altura devemos ter construído a primeira Bola de Vento em todo o mundo, pois só muitos anos depois, talvez dez ou mais, é que começaram a surgir como acessório indispensável nos catálogos dos fabricantes!! Terá sido?